sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

As hidrelétricas ao longo de minha vida


Júlio Lêdo, para o Blog do Coletivo Interser/Mercado Ético

Quando criança meus pais me levaram para conhecer as cachoeiras de Paulo Afonso na Bahia e lembro da alegria que senti ao ver toda aquela água caindo e das grandes construções ao seu redor, as quais me disseram ser “a fábrica da luz elétrica”. Fiquei muito impressionado com tudo aquilo e quando retornei a Recife ficava contando para todos meus amiguinhos, como era bacana o lugar que fazia luz.

Em 1992, junto aos colegas da faculdade de engenharia, fiz outra viagem a região de Paulo Afonso e para cidade de Piranhas –AL, nessa última para visitar as obras da hidrelétrica de Xingó, localizada entre os estados de Sergipe e Alagoas. Ao nosso lado estavam grandes mestres da engenharia, que orgulhosamente nos apresentavam os milhares de detalhes técnicos da imensa obra e da contribuição ao crescimento do Brasil que ela proporcionaria. Ao retornar dessa viagem, o aprendiz de engenheiro ficou orgulhoso de ter tido a oportunidade de visitar aquela espetacular obra da engenharia.

Alguns anos se passaram, e no ano de 2007, trabalhando como gerente de campo do Artesanato Solidário, estava retornando de uma visita a um projeto no sertão do Piauí, quando passei por uma cidade chamada Remanso, localizada no sertão da Bahia. Resolvi ficar um dia ali. A razão dessa parada foi curiosidade em conhecer a nova versão da antiga cidade Remanso, que foi inundada pelo grande lago de Sobradinho (o maior lago artificial do mundo em espelho d’água, criado como manancial para hidrelétrica de Sobradinho, no rio São Francisco – BA). Na verdade a cidade que fiquei foi a Remanso pós-lago, a outra já estava submersa.

Andei muito pelas suas largas e estruturadas ruas, visitei praças, comércio e a praia do lago. Mas uma coisa me incomodou bastante: será que seus moradores gostavam dessa nova cidade?Como tive pouco tempo, só consegui conversar com algumas pessoas, as quais reconheciam o grande esforço da Companhia energética responsável pela hidrelétrica em construir uma cidade com uma boa infra-estrutura, mas segundo elas, ainda faltava algo. Esse algo pelo que percebi através dessas conversas, era a história, eram seus passados.

Saí de lá com um pensamento que me acompanha até hoje: o que é melhor para mim, pode não ser melhor para o outro, uma casa de alvenaria, ruas pavimentadas e largas, praças bacanas… parecem melhor que casas de taipa, ruas estreitas de barro… mas talvez a visão do terreiro que se via daquelas velhas janelas sobre paredes decadentes que foram construídas com seus esforços, fizesse parte da felicidade daquelas pessoas, que hoje dizem que falta algo naquele lugar.

 “Potes servem para guardar água, mas flores nos potes servem para guardar símbolos” (Carlos Rodrigues Brandão)
Foto Júlio Lêdo/ Arquivo Pessoal
Atualmente tenho tido a oportunidade de conversar com pessoas que trabalham no setor energético de minha região e observo, com satisfação, uma preocupação crescente com as “flores nos potes”. Vale lembrar que sustentabilidade não é apenas uma questão ambiental, mas também justiça social. Respeitar as crendices, valorizar a diversidade cultural, resgatar e preservar as histórias, são elementos da justiça social, da sustentabilidade.

No início de uma tarde do ano de2011, estava no estado de Goiás mais uma vez a trabalho, eu aguardava uma pessoa que gentilmente nos guiava pela região, quando observei uma mulher, de meia idade e olhar sem vida. Não resisti e perguntei o que ela fazia naquele local.

- Vim aqui receber a indenização por ter tido minhas terras alagadas pelo lago da hidrelétrica.

- Mas porque a senhora está com essa tristeza tão grande num dia tão especial?
- Eu não estou feliz, isso aqui é fruto de muito sofrimento, muita dor. Não perdi apenas minhas terras, perdi meu marido, que morreu de tanto trabalhar para os outros depois que saímos de nossa terra, perdi foi minha vida. Hoje estou aqui, nem ler eu sei, só sabia mesmo cuidar de nossa terra. Só tenho tristeza. Já tentei até me matar esse ano.

Esse era o dia que, juntamente com uma grande amiga e companheira de trabalho, iniciávamos uma série de entrevistas com as pessoas da região atingidas pelas construções das barragens e que estão sendo beneficiadas por um programa de desenvolvimento.

Nessa mesma viagem, mas em município diferente, conheci outra mulher. Uma linda e inspiradora mulher, que transformou sua dor da perda em luta pela justiça social e bem estar comunitário. Uma das coisas que mais marcou em sua fala foi quando afirmou de onde vinha a água daquelas barragens: “Essas barragens não foram enchidas apenas com água do rio, mas com nossas lágrimas.”

Várias transformações são evidentes na região visitada no estado de Goiás, onde foram construídas hidrelétricas. Essas vão desde o aumento da população nas áreas urbanas, a novos locais de lazer e geração de renda, mesmo que para uma parcela pequena da população.

Voltei para Recife em dezembro de 2011 após a realização do trabalho em Goiás e me deparei com a loucura do consumo impulsionada pelo período natalino. Fiquei olhando aquele movimento, lembrando de todos os banhos de água morna que tomamos, mesmo nos dias quentes, das lâmpadas que esquecemos acesas, das coisas que compramos apenas para aproveitar aquela liquidação, da comida que compramos a mais e vai para o lixo, do presentinho que damos para suprir nossas ausências ou para substituir uma frase tão pequena e tão mais importante: eu te amo. Fiquei pensando que tudo isso pode estar alimentando algumas barragens com lágrimas de pessoas que viram suas histórias irem por água abaixo.

Minha atual percepção sobre as hidrelétricas, consideradas fontes de geração de energia limpa perante muitas outras, não anulam às que tive em outras fases de minha vida: beleza, obras espetaculares de grande relevância à sociedade, grande tecnologia e grandes transformações. Mas, hoje tenho a certeza que estamos todos e tudo interligados nesse grande lar chamado Terra e que excessos aqui, levam às faltas ali, às vezes, ao fim.
Os atuais debates sobre os impactos das hidrelétricas, especialmente a de Belo Monte, precisam ser intensificadas e levadas a todas as camadas da sociedade, pois a situação é de grande complexidade e todos, sem exceção, serão beneficiados e ao mesmo tempo, vítimas das mesmas. Aqui no Brasil, o sistema energético é interligado; Belo Monte, por exemplo, não irá gerar energia apenas para grandes consumidores da região norte, mas para todos os cidadãos brasileiros.

Pense um pouco, por trás daquele tal desenvolvimento econômico de sua região tem energia elétrica, a qual em sua maioria é proveniente das hidrelétricas. Esse texto não é um posicionamento pessoal a favor ou contra as hidrelétricas. Não é um artigo técnico sobre fontes de energia, mas sim, um convite a reflexão sobre um tema que permeia nossas vidas.

(Blog Coletivo Interser/Mercado Ético)


fonte: http://mercadoetico.terra.com.br