Carolina Derivi, para a Página 22
“Se algo não puder ser expresso em números, não é ciência. É
opinião.” Com todo respeito ao escritor americano Robert Heinlein, autor
desta frase, sua análise parece incompleta. O que falta é a admissão de
que a ciência não é apolítica. Assim como no debate público sobre a
Usina de Belo Monte, fervoroso no fim do ano passado, em que
interlocutores do time A ou do time B se apropriaram de dados técnicos
para invalidar visões contrárias.
É importante lembrar que em ambos os lados dessa polêmica há
cientistas suficientemente gabaritados para desbancar seus oponentes.
Todos os números que você vê por aí – inclusive os apresentados nesta
reportagem – são passíveis de contestação. Talvez a mais importante
descoberta para quem busca se posicionar sobre o assunto é a de que
existem muito mais dúvidas do que certezas em torno de Belo Monte.
A seguir, apresentamos o melhor de nossos esforços para esclarecer os
principais pontos desse debate de forma equilibrada e – como não
poderia deixar de ser – sob o ponto de vista do desenvolvimento
sustentável. Ao final, espera-se que o leitor entenda que toda essa
discussão técnica é, sim, uma questão de opinião. Ainda bem, já que
opinião pressupõe escolha, como aquelas grandes escolhas que sociedades
democráticas são convidadas a fazer de tempos em tempos.
[O CUSTO-BENEFÍCIO]
1 – Belo monte é Cara ou Barata?
Em seis anos, o orçamento avançou em mais de R$ 20 bilhões
Você provavelmente já ouviu os argumentos antagônicos. Há quem
defenda que a energia hidrelétrica ainda é a modalidade de geração mais
barata entre as renováveis. E há quem diga que o custo final desta usina
em particular deverá ser exorbitante se comparado à energia
efetivamente produzida, da ordem de 4,4 mil megawatts/hora, em média, ou
cerca de 40% da capacidade instalada.
Um primeiro passo é definir qual critério se deseja usar: o preço
final da energia negociada ou o custo de investimento. O primeiro,
definido em leilão, no ano passado, foi estipulado em R$ 78 por
kilowatt/hora. Esse valor é ligeiramente inferior à média nacional, de
R$ 80, e bastante vantajoso se comparado à média da energia eólica, de
R$ 100.
No entanto, críticos do projeto argumentam que esse preço não
remunera o capital investido. Sintomaticamente, a empresa Norte Energia,
ganhadora do leilão, já fala em vender 20% da energia de Belo Monte ao
mercado livre [1] , com preços mais elevados.
[1] Espaço jurídico em que consumidores corporativos podem escolher seus fornecedores, negociando contratos livremente
O problema é que o preço oficial foi balizado por um orçamento de R$
19 bilhões, aprovado pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Entretanto,
a empresa já atualizou as contas para R$ 26 bilhões. Se considerarmos
que essa estimativa era de R$ 4,5 bilhões em 2006, trata-se de um avanço
de mais de R$ 20 bi em apenas seis anos.
A facilidade com que as cifras engordam levanta a suspeita de que
empreendedores e governo possam ter calculado mal a complexidade e,
consequentemente, o custo de toda essa operação. Quando ocorreu a
aprovação do orçamento pelo TCU, em 2010, houve um acréscimo R$ 2,2
bilhões sob a justificativa de que os custos de logística e manutenção
do canteiro de obras haviam sido “subestimados”.
Desde o último salto, as explicações são mais nebulosas. O presidente
da Norte Energia, Carlos Nascimento, alega que o aumento de quase 40% é
resultado de atualização em índices de preço que orientam o mercado. A
justificativa causa espécie em um ano em que a inflação oficial não
passou de 6,5%.
O número mais propalado quando se fala no custo de investimento de
Belo Monte é de R$ 30 bilhões. Essa estimativa veio de empreiteiras,
grupos de investimento e técnicos ouvidos pela imprensa ao tempo do
leilão. Se a previsão se confirmar, Belo Monte será a hidrelétrica mais
cara e proporcionalmente menos produtiva da história brasileira.
2– A potência de Belo Monte é satisfatória?
Quanto mais o projeto se adaptou para reduzir o impacto ambiental
direto, mais passível de questionamento técnico e econômico se tornou
O fator potência também pode ser avaliado de diferentes ângulos. O
físico Luiz Pinguelli Rosa, professor da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e ex-presidente da Eletrobrás, costuma lembrar que nenhuma usina
opera no total de sua capacidade o tempo todo e que a potência firme de
Belo Monte – 40% da potência instalada – não está assim tão distante da
média das hidrelétricas brasileiras, de pouco mais de 50%.
“A operação de Belo Monte não pode ser vista isoladamente (…) Quando
Belo Monte gerar 11 GW, ela vai economizar água em reservatórios de
outras usinas, que reduzirão sua geração. E essa água guardada permitirá
gerar energia adicional nessas usinas”, disse ainda o professor, em
artigo publicado no jornal O Globo.
Outra maneira de interpretar esses mesmos números é dizer que Belo
Monte será a terceira maior hidrelétrica do mundo, mas com produtividade
muito inferior ao que seria esperado de uma grande usina, a um custo
elevado. É senso comum no mercado que a potência firme precisa girar em
torno de 55%, no mínimo, para que a rentabilidade da geração seja
considerada segura. Foi a incerteza sobre a viabilidade econômica que
levou o consórcio liderado por Odebrecht e Camargo Corrêa a desistir do
leilão. E essa mesma insegurança impele o governo a distribuir benesses,
como o desconto de 75% no imposto de renda durante 30 anos e o
financiamento de até 80% do custo total do projeto pelo BNDES.
A baixa potência tem estreita relação com o licenciamento ambiental. A
reformulação do projeto para transformar Belo Monte numa usina do tipo
fio d’água [1] foi essencial para destravar o processo, embargado pelo
Supremo Tribunal Federal desde 2002. Até então, estavam previstas quatro
usinas que causariam a inundação de terras indígenas.
[1] Tecnologia que reduz ou elimina a necessidade de reservatório
Quanto mais o projeto se adaptou para reduzir o impacto ambiental
direto, mais passível de questionamento técnico e econômico se tornou. O
reduzido controle sobre a vazão do rio levou à queda na potência firme,
enquanto o orçamento só fez subir. Mas mesmo a projeção de 40% é
insegura, porque nunca se viu uma usina a fio d’água com essas
proporções. Até hoje, essa tecnologia é típica de hidrelétricas menores e
rios de vazão regular, o que não é o caso do Xingu.
Especialistas críticos ao projeto, como o professor Célio Bermann, da
USP, e o professor Oswaldo Sevá, da Unicamp, acreditam que as demais
usinas previstas no projeto original serão retomadas tão logo Belo Monte
esteja concluída. O acúmulo de reservatórios no Rio Xingu permitiria
maior produtividade energética, com impactos socioambientais igualmente
maiores.
[O CUSTO SOCIOAMBIENTAL]
3 – Os índios serão atingidos?
Dado o ineditismo do projeto, é impossível garantir que a vida de quem depende da floresta continuará a mesma
O dois lados da polêmica respondem “sim” e “não” para essa mesma
pergunta. Isso acontece porque há diferentes interpretações sobre o que
significa ser “atingido”. Como não haverá inundação ou obras no interior
das terras indígenas, governo e empreendedores consideram que o impacto
direto seja inexistente.
Os procuradores do Ministério Público Federal do Pará discordam dessa
interpretação. As principais preocupações dizem respeito à
navegabilidade do rio e à disponibilidade de peixes, especialmente na
região conhecida como Volta Grande do Xingu e chamada tecnicamente de
Trecho de Vazão Reduzida. É ali que vivem os Juruna, da Terra Indígena
Paquiçamba, e o povo Arara.
Nesse trecho do rio, em formato de ferradura, o projeto prevê um
desvio das águas por meio de canais diretamente até o Sítio Belo Monte,
na outra ponta da ferradura, onde serão instaladas as turbinas (veja mapa abaixo).
Projeções contidas no estudo de viabilidade (Eletrobrás/Eletronorte,
2002) mostram que a vazão mínima proposta para a Volta Grande é muito
inferior aos recordes históricos de seca verificados com a oscilação
natural do rio.
A solução encontrada pelo Ibama foi estabelecer um “hidrograma de
consenso” que admite um período de teste de seis anos, ao cabo dos quais
se verificará se todos os ecossistemas daquela região serão capazes de
suportar a interferência no rio. A proposta de teste demonstra que, dado
o ineditismo do projeto, é impossível garantir que a vida de quem
depende da floresta continuará a mesma – aí se incluem também as
populações ribeirinhas.
Trata-se de uma região de floresta de aluvião, cujo equilíbrio
ecológico depende do alagamento sazonal. A Bacia do Xingu é habitada por
24 etnias que ocupam 30 Terras Indígenas, 18 no Pará e 12 em Mato
Grosso.
Caso os indígenas da Volta Grande fiquem isolados em algum período do
ano por falta de navegabilidade, e caso o impacto ambiental afete
espécies animais e vegetais necessárias à sua sobrevivência e aos seus
rituais, a terra ancestral se tornará imprestável, ainda que não haja
inundação. Foi essa imprevisibilidade que levou o Ministério Público
Federal a mover nove ações civis públicas, valendo-se do preceito
constitucional de que os índios deveriam ser consultados sobre obras que
afetam suas terras e suas vidas.
Outras ameaças incluem pressão por desmatamento, migração de não
índios, conflitos fundiários e epidemias como malária e dengue. Para
evitá-las, o Ibama definiu condicionantes, entre elas a demarcação e a
proteção de terras indígenas contra invasões. Recentemente, o MPF
requereu informações à Norte Energia sobre o andamento das medidas. Até o
momento, não há notícias de que alguma delas tenha sido inteiramente
concluída.
mapa V_02
4 – A população local será beneficiada?
É exatamente a expectativa de progresso que atrai milhares de migrantes para os arredores de grandes obras na Amazônia
Em dezembro passado, o presidente da Empresa de Pesquisa Energética
(EPE), Mauricio Tolmasquim, causou repercussão ao afirmar que a
população de Altamira [1] teria ganhado “um bilhete premiado da
loteria”, graças à construção de Belo Monte.
[2] Principal cidade na área de influência da usina
Tolmasquim fazia referência aos R$ 3,5 bilhões previstos no projeto
para compensação socioambiental e que devem ser aplicados em segurança,
infraestrutura, melhora nos serviços de saúde e educação, entre outros
itens. Na ocasião, o representante do governo federal teria dito que o
montante corresponde a “sete vezes o orçamento do Pará inteiro”. No
entanto, a previsão orçamentária paraense para 2012 é de R$ 13 bilhões.
Seja como for, um olhar mais completo sobre essa questão impõe
cautela. É exatamente a expectativa de investimentos, de progresso e
emprego que invariavelmente atraía milhares de migrantes para os
arredores de grandes obras na Amazônia. A Estatal Eletronorte, que
formulou os estudos de viabilidade de Belo Monte, previa um fluxo
migratório de 96 mil pessoas.
Essa estimativa equivale a dobrar a população atual de Altamira. Isso
significa também dobrar as demandas sociais e, eventualmente, os
problemas. O processo típico em torno de um grande canteiro de obras na
Amazônia vem acompanhado de invasão de terras públicas, desmatamento
acentuado, inflação – em especial, dos preços de moradia –, superlotação
de hospitais, falta de vagas nas escolas, aumento da criminalidade, e
assim por diante. (saiba mais na reportagem “Caravana sem fim”)
A única maneira de evitar ou mitigar os efeitos do inchaço
populacional seria antecipar medidas compensatórias, com planejamento,
muito antes que os operários dessem início aos trabalhos. Belo Monte não
inovou nesse aspecto. Os investimentos necessários são projetados para o
futuro na forma de condicionantes, estabelecidas pelo Ibama em suas
licenças. A maioria delas ainda está em andamento, enquanto a
migração se processa no presente.
[O CUSTO-OPORTUNIDADE]
5 – Há alternativas para Belo Monte?
Os dilemas não dizem respeito a apenas uma usina, mas ao planejamento energético nacional
Uma resposta simplista, porém formalmente correta, poderia ser:
chuveiro. Apenas os chuveiros elétricos sugam cerca de 5% do consumo
nacional de eletricidade. Se houvesse uma política pública para eliminar
progressivamente esses aparelhos e incentivos para substituí-los
preferencialmente por energia solar térmica, o saldo de watts seria
superior ao que Belo Monte será capaz de produzir.
Mas o mesmo também poderia ser dito da repotenciação de usinas já
existentes, com mais de 20 anos, cujo potencial estimado é de 15 mil MW.
Ou, ainda, da energia eólica, que, embora no Brasil não conte com os
mesmos subsídios generosos destinados a hidrelétricas, está se tornando
cada vez mais competitiva.
Se levarmos em conta apenas os números específicos, seria possível
substituir Belo Monte por um monte de outras coisas. Mas a questão aqui é
que os dilemas não dizem respeito a apenas uma usina. O mais recente
Plano Decenal de Expansão (PDE) prevê 60% de aumento no consumo de
energia para os próximos dez anos. Nesse cenário, todas as medidas
mencionadas acima, inclusive novas hidrelétricas, seriam necessárias.
O cerne da oposição da sociedade civil à política energética
brasileira tem a ver com planejamento. O argumento é de que o País
deveria considerar primeiro as low hanging fruits, ou seja, as
medidas mais fáceis e de retorno mais imediato, que consistem
basicamente em aumentar a eficiência de todo o sistema. Para se ter uma
ideia, 16% de toda a energia produzida no País se perde ao longo da
transmissão e da distribuição. Neste caso, o custo-oportunidade é que,
enquanto se investe algo como R$ 30 bilhões em uma única hidrelétrica,
de baixa produtividade, outras possibilidades perdem envergadura.
A pergunta deste tópico é a mais difícil de responder, porque coloca o
leitor leigo – e nós, jornalistas, também – como reféns de dados
técnicos embasados, mas opostos. O que sobressai é política, é a
escolha. O estudo Cenário Elétrico Sustentável 2020, produzido por
pesquisadores da Unicamp e publicado pelo WWF, em 2006, aponta que 38%
do consumo nacional de energia em 2020 poderia ser satisfeito apenas com
medidas de eficiência. Já o PDE aposta sobremaneira na expansão do
parque elétrico, para aumentar a produção em 55%. Quem tem razão?
6 – E o que o alumínio tem a ver com tudo isso?
No Brasil, seis setores industriais consomem 30% da energia produzida
Como se a drástica redução das emissões de gases de efeito estufa já
não fosse desafiadora o bastante, as políticas energéticas e climáticas
em todo o mundo estão basicamente centradas na oferta. Isso torna tudo
muito mais difícil, porque a substituição de fontes poluidoras por
renováveis demanda tempo e tecnologia. Por essa razão, organizações da
sociedade civil e think tanks cada vez mais clamam por uma revisão do perfil da demanda. Afinal, para que usamos tanta energia?
No Brasil, seis setores industriais consomem 30% da energia
produzida. São as indústrias eletrointensivas, entre as quais se
destacam alumínio, cimento e celulose. A título de comparação, uma
tonelada de alumínio demanda o equivalente a 70 vezes o consumo mensal
de eletricidade em um domicílio de classe média. As projeções de aumento
exponencial de consumo energético do PDE passam ao largo de discutir se
seria ou não desejável dobrar a produção de alumínio no Brasil nos
próximos dez anos, conforme também se projeta.
Mas a discussão é pertinente. O quadro de reprimarização da economia brasileira (mais na Análise “Deitada em berço primário”, de Ricardo Abramovay)
faz parte de um processo global iniciado nos anos 80. Conforme os
problemas ambientais foram se tornando mais prementes e incômodos, os
países de alto desenvolvimento passaram a “exportar” as indústrias
ambientalmente indesejáveis – entre as quais as eletrointensivas – para o
Sul global. O Japão, por exemplo, reduziu sua produção doméstica de
alumínio, de 1,6 milhão de toneladas em 1980 para apenas 30 mil
toneladas.